11.4.14

Trabalhos de amor perdidos, Jorge Furtado

A coleção Devorando Shakespeare da editora Objetiva é resultado de uma mudança no mercado das letras que começou na década de 80, quando tem início o processo de profissionalização do escritor. Se, grosso modo, os anos 50 e 60 foram marcados por uma literatura denunciadora das agitações, e a década de 70 representou o momento do engajamento e da ação, os anos que seguiram nosso período de redemocratização se caracterizam por uma literatura na qual as diferenças não só coexistem como são partes constituintes do edifício ficcional das obras, que passaram a combinar registros múltiplos de linguagem dialogando com o cinema, a televisão e outras mídias.

Esse esforço de integrar o discurso narrativo a outras formas de representação partiu tanto dos autores -- os quais, profissionais das letras, necessitavam competir por leitores com os meios de comunicação de massa -- quanto das editoras, interessadas na popularização do livro e crescimento do mercado consumidor. Criou-se, com isso, uma literatura mais antenada com as tendências culturais, que não apenas dialoga com as linguagens da mídia mas que procura atingir exatamente o mesmo público cativo. A criação de selos ou coleções temáticas encomendadas a autores de destaque de nossa literatura atual responde à esse projeto de movimentação do mercado livreiro, com vistas à adesão de novos leitores bem como à fidelização dos leitores calejados (sem falar nos colecionadores, vítimas da impossibilidade de adquiriram apenas aqueles volumes que, de fato, têm a intenção de ler).

Quem não lembra das coleções Plenos pecados (Objetiva) e Literatura ou morte (Companhia das Letras) na década de 90? Ou mesmo a recente Amores expressos (Companhia das Letras) e a absurda-ainda-que-esperada coleção Clássicos fantásticos (Lua de Papel), que insere mutantes, discos voadores, bruxas e vampiros onde antes havia senhoras, casmurros, isauras e alienistas? Dentre várias coleções, no entanto, Devorando Shakespeare foi, sem dúvida, a mais tímida e breve, contando com apenas três títulos, assinados por Jorge Furtado, Luis Fernando Veríssimo e Adriana Falcão, lançados entre 2005 e 2006. A proposta foi louvável: criar, num contexto contemporâneo, narrativas baseadas no universo das comédias shakespearianas, sejam elas novas versões de suas peças (como fez Veríssimo), recriações de suas personagens (o caso de Falcão) ou ainda releituras mais abrangentes de seu legado cultural, a opção de Furtado. 

Exatamente por essa razão, Trabalhos de amor perdidos foi uma excelente escolha para dar início ao selo ao apresentar ao leitor a importância da obra de Shakespeare através de uma narrativa agradável, bem-humorada e, ao mesmo tempo, descaradamente pedagógica. As citações do bardo proliferam ora explícitas ora escondidas no texto, mas escondidas de forma a brincar com a bagagem do leitor e fazer com que o mesmo consiga detectá-las quando imaginava que não soubesse lá muita coisa que cheirasse a teatro elisabetano. O mote do romance é o mesmíssimo da peça: assim como em Love's labour's lost os fellow-scholars fazem a promessa conjunta de viverem para a filosofia e contemplação da arte longe das mulheres, um canadense, um norte-americano e um brasileiro agraciados com uma bolsa de estudos se encontram em Nova York para louvar o bardo e desenvolver projetos voltados à popularização de sua obra, ao mesmo tempo em que se lançam em complicadas distrações com o sexo oposto. 

Uma espécie de bildungsroman atrapalhado, de leitura rápida e repleto de curiosidades sobre Shakespeare, com um desfecho deveras inusitado (para não dizer sombrio) e uma excelente catalogação de suas personagens: assim pode ser brevemente caracterizada esta primeira ficção longa do diretor de Ilha das flores. Ignorada a arte de capa demasiado erótica para o que o romance efetivamente é, seu maior mérito será alcançado através de sua adoção como introdução à obra de William Shakespeare pelo público brasileiro: livre de academicismos e ranço teórico, Jorge Furtado consegue trabalhar parodicamente o texto original por meio de uma estrutura misè-en-abime em que as personagens e situações compostas pelo dramaturgo inglês são tomadas de empréstimo pelo escritor brasileiro para falarem de seu criador. A grande diferenciação do romance, no entanto, acontece ao final da narrativa, que se distância daquele estar-bem-quando-tudo-acaba-bem das comédias shakespearianas para lembrar ao leitor de hoje o quanto ainda é verdadeira a frase de Hamlet, aquela sobre haver entre o céu e a terra muito mais do que possamos sonhar, seja para o bem ou para o mal.

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