11.4.14

A Última Quimera, de Ana Miranda

Na obra de Ana Miranda há um recorte bem específico: o diálogo com a tradição literária brasileira. Quatro de seus romances constituem experiências de aproximação à obra de escritores de nosso cânone. A linguagem de cada autor influencia a forma e o conteúdo que o romance terá e, como num palimpsesto, o discurso é tecido de modo a encobrir apenas superficialmente a expressão original dos autores retomados. Incorporando ao seu texto poemas, cartas, crônicas e vocabulário característico daqueles escritores, a autora se relaciona com o cânone através de empréstimos em diferentes graus e engendra, com isso, narrativas que se transformam em recepção crítica estilizada de suas obras.

Três registros principais integram o discurso intertextual do romance 'A última quimera': a poesia de Augusto dos Anjos, a correspondência do poeta com sua mãe e amigos íntimos e a fortuna crítica de sua obra. O hipertexto é construído como a fala de um eu testemunha (Friedman) que arregimenta em um único discurso híbrido essas e outras vozes (admite-se que o narrador não nomeado do romance seja Orris Soares, responsável pela segunda edição do “Eu” (1920), e autor de “Elogio a Augusto dos Anjos”).

Desse amálgama de fontes surge no romance a velha imagem do poeta sofredor e incompreendido, vivendo nas “más condições daquele sobrado”, cercado por “uma sombra” e “voltado para seu passado” em “melancólicas peregrinações”. Uma rápida passagem pelas principais histórias da literatura brasileira confirmaria o sofrimento e a humilhação como constantes da vida de Augusto dos Anjos, sendo raros os casos que não remetam a um ou vários infortúnios do poeta para explicar o conteúdo de sua poesia. Essa compreensão expressa um ponto de vista fortemente presente em nossa crítica, atribuída por Antonio Candido a "nosso modo de ser (...) bastante romântico", "uma tendência quase invencível para atribuir aos grandes escritores uma quota pesada e ostensiva de sofrimento e de drama, pois a vida normal parece incompatível com o gênio".

Não obstante, o texto de Ana Miranda subverte clichês para apresentar um Augusto dos Anjos multifacetado, num movimento eminentemente pós-moderno de acréscimo e reavaliação: “Ele era assim. Achava que os sofrimentos vêm do inferno – e decerto vêm –, que são brincadeiras dos demônios. Tinha uma visão jocosa do inferno. Ao contrário do que pensam dele, era um homem surpreendentemente bem-humorado, em sua essência mais íntima.” Alimentada por uma tradição crítica constrangida pela impossibilidade de atribuir um lugar na história da literatura a Augusto dos Anjos, Ana Miranda posiciona o poeta contra as tendências da época: “Augusto estava fora disso, era um iluminado, sua poesia tem a centelha divina, não precisa da turbamulta dos escrivinhadores anódinos das confrarias e suas frioleiras. Ele sempre teve a liberdade de raciocínio, sua razão e seus sentimentos sempre foram soberanos.” (MIRANDA, 2000: 262).

Em 'A última quimera', Ana Miranda cria um Augusto com força poética e significado suficientes para criar sua própria escola literária: “Augusto partia do real e mergulhava no ideal. Nesta ascensão, tinha seu negror, sua sinfonia, sua alma tocada de luz. A poesia de Augusto não é simbolista, nem cientificista, nem parnasianista; é feita de carne, de sangue, de ossos, de sopros da morte; é ele, integralmente, na nudez de sua sinceridade existencial, no clamor de suas vibrações nervosas, na apoteose de seu sentir, nos alentos e desalentos de seu espírito. Seus poemas são lâminas de aço polido que refletem seu rosto descarnado (MIRANDA, 2000: 263)”. O arremate da autora, no turbilhão de considerações sobre escolas, tendências e estilos literários conclui a favor de uma leitura de sua poesia livre de rotulações, em que a literatura possa existir naquilo que tem de único e insondável. Nesse sentido reside a maior contribuição do romance: à medida que apresenta o poeta paraibano ao grande público, convida o leitor a questionar e refletir sobre seu lugar em nosso cânone.

No comments: