22.3.12

O quarto de Jacob de Virginia Woolf

Talvez porque os ânimos não estivessem afeitos a uma prosa espicaçada e aventurosa, menos entregue à imediata coerência e mais fragmentada, a leitura de "O quarto de Jacob" foi uma experiência quase maçante, preciso confessar. Quase, porque, mesmo em se tratando de uma tradução, pude aqui e acolá, com requintado prazer, distinguir por trás da opção portuguesa, as expressões eminentemente aristocráticas e o vernáculo deliciosamente britânico caríssimos à escrita de Virginia Woolf — e daí, para um bom anglófilo, sempre há de vir algum deleite, ainda que a malcuidada edição da Novo Século insistisse em negá-lo com seus abundantes erros tipográficos (não houve revisão, é isso, senhores?).

Apesar de acostumado à prosa da autora – havendo, diga-se de passagem, experimentado e apreciado a dissolução máxima de enredo em “As ondas”, romance do qual em seguida a autora precisou se recuperar escrevendo algo mais leve, cujo resultado foi “Flush” – apesar, dizia, de conhecer e admirar com excelentes recomendações boa parcela da obra de Woolf, “O quarto de Jacob” é uma narrativa de difícil envolvimento. As razões podem ser encontradas, talvez, na breve análise do desenvolvimento de sua ficção, por mais que nosso conhecimento esteja aquém de semelhante aventura, e ainda haja certa resistência pessoal quanto ao emprego de soluções comparativas como forma exegética. Com o perdão de ambos os impedimentos, sigamos.

“O quarto de Jacob” foi o terceiro romance de Virginia Woolf, mas o primeiro publicado pela editora que ela e o marido, Leonard Woolf, haviam criado – a Hogarth Press. “Voyage out” e “Night and Day”, foram levados ao prelo pelo meio-irmão ultraconservador de Virginia. Por esse motivo, aquelas duas primeiras obras tiveram de ser “adequadas” ao milieu editorial vitoriano, de maneira que a autora não pode trabalhar em completa liberdade como desejava. “O quarto de Jacob” será, portanto, o grande salto da obra de Virginia. A partir dele, a autora “não tem mais quaisquer dúvidas de que descobriu como começar a dizer qualquer coisa com a sua própria voz; e isto lhe interessa tanto que é capaz de seguir em frente sem louvores” (de seu Diário).

Celebrado como um marco do modernismo – apesar da autora nunca ter usado palavra semelhante para descrever a si mesma ou sua obra – o livro foi recebido com louvores, e representou o início de sua fama e a formação de sua maturidade literária que alcançaria um perfeito equilíbrio entre forma e conteúdo com Mrs. Dalloway (1925), Orlando (1928) e o já referido As Ondas (1931). O romance narra a história do jovem Jacob Flanders entre lareiras, salões, primaveras, Cornualha, festas, livros, aulas, Grécia, gente, melancolia, ruínas, cartas, telefonemas, Guerra – assim mesmo, fragmentariamente. A explicação do título está no último capítulo
um dos mais comoventes arremates da narrativa woolfiana.

A qualidade mais impressionante do romance é, sem dúvida, quando refletimos sobre a fragmentação do texto, a liberdade com que Virginia permite que se movam as personagens, deixando no leitor a sensação de que o próprio Jacob, central à obra, às vezes escapa do livro e se perde. Quando novamente o reencontramos, anos se passaram, mal conhecemos os rostos ao nosso redor, e descobrimo-nos numa outra sala de estar a nos perguntarmos:
“é essa a maneira de gastarmos nossos dias? Os raros, os limitados, tão depressa perdidos dias – tomando chá? jantando fora? E os bilhetes se acumulam. E os telefones tocam. Onde quer que estejamos, fios e tubos nos rodeiam para levarem nossas vozes, que tentam penetrar antes que o último cartão seja mandado e os dias se acabem. “Tentam penetrar”, porque quando erguemos a taça, e apertamos a mão, e expressamos tal desjeo, alguma coisa sussura: isso é tudo? Jamais poderei saber, partilhar, ter certeza? Estarei condenada todos os meus dias a escrever cartas, a enviar vozes que caem sobre a mesa do chá, fenecem nos corredores, marcando encontros para jantar, enquanto a vida vai se encolhendo? Ainda assim, porém, as cartas são veneráveis; e o telefone necessário, pois a jornada é solitária e, se estamos vinculados por bilhetes e telefonemas, andamos acompanhados – quem sabe? –, talvez possamos conversar no caminho."
Caso a tietagem seja permitida à guisa de conclusão, são passagens como essa que fazem valer a pena mesmo o mais maçante dentre os romances de Virginia Woolf.

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