13.4.12

Sem Pecado, de Ana Miranda

Dentre as tendências atuais da literatura brasileira, Ana Miranda figura como uma das mais importantes representantes do romance histórico contemporâneo. Sua obra — ainda que composta por coletâneas de contos intimistas, poemas, livros infanto-juvenis e crônicas — tem sido, independente da variedade temática ou formal, reiteradamente associada aquele recorte literário. “Sem pecado”, publicado em 1993 após “Boca do inferno” (1989) e “O retrato do rei” (1991), é seu terceiro romance, e representa tanto uma quebra no insistente rótulo que irá perseguir sua obra quanto um sintoma de que sua literatura tem anseios mais amplos do que o escopo histórico poderia abranger.

Na trilha do Bildungsroman, “Sem pecado” narra a trajetória de Bambi, uma garota de treze anos que foge da casa dos pais no Maranhão para o Rio de Janeiro, onde sonha se tornar atriz de teatro. Novidade nenhuma, parece sugerir o resumo. Mas, diferente do muito que já foi escrito sobre jovens que são tragadas, subjugadas, engolfadas, devoradas, enfim, perdidas no turbilhão da cidade grande, Bambi não será mais uma vítima, pois já pertencia à metrópole muito antes de lá chegar. Claro que sofrerá decepções, frustrações, tentativas de estupro, e se envolverá em mistérios, mas sua avaliação nunca deixará de indicar que o ponto de partida do romance, a cidade do Rio, é também seu ponto de chegada, e que a luta pelo sonho valeu a pena. Como sugere o título do romance e a epígrafe que lhe abre o relato, retirada à epístola de São Paulo a Tito, “Tudo é puro para aqueles que são puros”, ou seja, com arremates às vezes ousados, às vezes de singela pureza, as aventuras narradas por Bambi sugerem, desde seu pórtico epigráfico, uma história pungente, divertida, sensível, cheia de vicissitudes, mas nunca uma reprise trágica da Lolita nabokoviana.

Quem conhece a obra de Miranda é capaz de perceber que cada romance parece servir de mote a um anseio bastante específico, seja o trabalho com a linguagem de uma época (“Desmundo”), a poética de um escritor (“Boca do inferno”,"A última quimera", “Dias & Dias”, “Clarice”), ou ainda o próprio arcabouço linguístico das culturas que formam nosso português (“Yuxin – Alma”, “Amrik”). Todas essas instâncias, no entanto, são perpassadas pela mesma necessidade de se trabalhar as inúmeras possibilidades da linguagem enquanto mergulho em si mesmo e no outro. Em “Sem pecado” o foco recai sobre a linguagem teatral (vale lembrar que Ana Miranda também é atriz), e as reflexões sobre o estatuto do espectador, a necessidade da ficção, e a tautológica busca entre ser e representar, conhecer e compreender, em suma, entre o palco da vida e a ribalta. Bambi “compreendia a caricatura da vida, mas não a própria vida com suas imprevisibilidades” (p. 194). Não deixa de ser, porém, um romance naïve, com personagens até certo ponto previsíveis – o psiquiatra obcecado por ninfetas, o dramaturgo fascinado por assassinos e mulheres fatais, o melancólico vendedor em busca de aventuras extraconjugais, o irmão doente com tendências suicidas – e uma trama que namora o thriller, bem urdida e capaz de empolgar, é verdade, mas longe de constituir atrativo principal da obra. Não seria de todo atrevido classificá-lo como romance de formação da própria autora, ainda em busca de sua maturidade literária (alcançada, segundo ela mesma, a partir de “Desmundo”).

Uma leitura atenta dos romances de Ana Miranda revela que a história brasileira é sem dúvida uma constante ficcional, mas está longe de constituir o elemento mais característico de sua produção. Em entrevista, a autora esclarece que a experimentação é o traço definidor de sua escrita, e o trabalho com a linguagem o aspecto mais importante da literatura que vem produzindo (LITERATO, programa de televisão, disponível no YouTube). Em cada romance, Ana Miranda procura investigar a linguagem em sua mobilidade diacrônica, realizando experiências com a dicção de várias épocas. Sua escrita explora as possibilidades de se conhecer o passado através da linguagem de diferentes períodos, criando “um elo na construção literária da humanidade, uma pequena e frágil conexão entre um e outro tempo, massacrada pelas circunstâncias históricas.” (MIRANDA, “Deus-dará”, 2003, p.47).

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