12.8.12

O cemitério de Praga, de Umberto Eco


Sou grande admirador (e usuário) do Umberto Eco Teórico, que contribui com excelentes trabalhos sobre a presença do leitor no texto, cuja função principal seria a de sustentar e arrematar as estratégias interpretativas de qualquer obra. Para o Eco de “Lector in Fabula” e “Seis passeios pelos bosques da ficção”, o texto é “uma máquina preguiçosa pedindo ao leitor que faça uma parte de seu trabalho”. Isso significa que qualquer narrativa de ficção está formada por uma série de mecanismos que não só preveem, como procuram criar o leitor-modelo para aquela obra, alguém disposto a aceitar as regras do jogo da leitura e seguir as convenções ficcionais (trocando em miúdos, desista de ler “Chapeuzinho Vermelho” se não consegue aceitar que naquele universo os lobos falam e pronto, não lhe devem mais explicações).

Umberto Eco Romancista, todavia, me decepcionou uma vez mais. A primeira delas, com “A misteriosa chama da rainha Loana” do qual, como seu narrador, prefiro nem lembrar. A segunda foi este “O Cemitério de Praga” (ainda não tive o tempo para ler seu famoso e bem quisto “O nome da rosa” que, oxalá, será sua redenção). Por uma coincidência acadêmica, tive de reler as 6 conferências que Eco realizou em 1993 na Universidade Harvard (publicadas como “Seis passeios pelos bosques da ficção”) e qual não foi minha surpresa ao encontrar toda a “história” (aqui, em formalista oposição ao “enredo”) do novo romance ali, destrinchada e diagramatizada (uma obsessão do autor) na última das conferências. Nela, Eco procura explorar os limites entre ficção e realidade, e nos mostra como amiúde a ficção é às vezes muito mais convincente que os fatos do mundo real, levando pessoas a dar fé à fantasia, por mais “desconjuntada” que esta seja. A intrusão da ficção na vida pode ter impactos neutros, positivos ou negativos. A história real de “O cemitério de Praga” culmina na criação dos "Protocolos dos Sábios de Sião", usados por Hitler na composição de "Mein Kampf"; obviamente, um exemplo do último caso. 

Ciente das teorias do Eco, armei-me (ou desarmei-me) como pude para iniciar a leitura desse romance, com a mesma disposição de um “leitor de segundo grau” (aquele preparado para identificar os mecanismos ficcionais mesmo à medida que frui o texto). O esforço, todavia, não foi bem pago. Erudito como só ele consegue ser (perdendo somente para o Sr. Google – Eric Hobsbawn), Eco descortina um caudal de informações e fatos históricos que, a não ser que o leitor seja o supracitado historiador, inevitavelmente contribui para que o grau de desorientação se avizinhe ao desinteresse. Claro que, na economia da obra, a estratégia faz todo o sentido: o turbilhão procura mimetizar o mesmo desencontro de informações que caracteriza a trama de conspirações, com seus grupos secretos, facções, espiões, traidores, vira-cassacas, suas guerras civis, espionagens, prostitutas, explosões, prisões, reuniões secretas, etc. E o pobre leitor que nem o diabo de Grande sertão: na rua, no meio do redemunho. 

Para piorar a situação, Eco fez de sua narrativa o encontro de três discursos: primeiro, do Narrador, assim mesmo, em maiúscula; em seguida, sob a forma de um diário, o discurso do protagonista, o falsário Simonini – misantropo misógeno anti-semita cujo ódio particular aos judeus é justificado com motivos infantis; por fim, o de uma terceira personagem, que misteriosamente se comporta como um alter-ego de Simonini, o abade Dalla Piccola. O advérbio acima deve ser atribuído a muita bondade nossa. Por mais que tenha se esforçado por manter sob “neblina” (imagem cara ao autor) a identidade do abade que se intromete nas anotações diárias de Simonini (uma atitude, diga-se de passagem, estimulada por certo doutor Froïde), o resultado final é um mistério forçado, que só com bastante complacência do leitor interessado em jogar com o romance não será resolvido assim que surja no texto. Contribui mais uma vez à confusão referida acima, e à suspeita de que em tempos de sociedades secretas e jogos políticos, não se pode confiar em ninguém.

Por fim, como é característico de um escritor com o arcabouço crítico-teórico de Umberto Eco, “O cemitério de Praga” é também uma homenagem, neste caso aos periódicos franceses, grandes incitadores de verdades e mentiras (o texto contém gravuras à maneira dos feuilleton do século XIX; analogamente, “O nome da rosa” trabalha as convenções do romance policial, assim como “Loana” é um tributo ao romance memorialista – à la Proust, talvez?). Expediente que, além do aspecto tributário, aparece no romance gratuitamente, sem qualquer contribuição ao desenvolvimento da narrativa ou para a assimilação de seu conteúdo pelo leitor (prova-o a escolha dos trechos que servem de legenda às gravuras). De maneira geral, assim se me afigura o novo romance de Umberto Eco: um excelente material sobre conspirações que conta a história do poder da ficção, mas que, arregimentado como foi no enredo de “O cemitério de Praga”, não passa de uma disposição confusa de fatos históricos. Lastimavelmente, Eco deu a esses fatos verídicos uma forma narrativa que somente o esforço e a boa vontade do leitor poderão convencê-lo de sua verossimilhança.



1 comment:

Gilberto Ortega Jr said...

ih eu que gosto do eco então vou manter distancia deste lvro ai